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Clarice perdeu a mãe aos três anos. A locomotiva que passava todos os dias carregando cimento era o seu despertador todas as manhãs, quando ela, ainda tão pequena, precisava se arrumar para trabalhar entre as lavouras de laranja em Itaboraí, no estado do Rio de Janeiro. E era lá, por entre o cheiro cítrico, misturado à amarelidão das laranjas, que Clarice cresceu tendo de lidar com seus sentimentos, a perda de sua mãe, a tristeza que causava a ausência de seu pai e uma vontade grande de estudar.

Foi lá, no amarelo cítrico dos pomares de laranja, que Clarice aprendeu a ser madura, a ser resiliente, e buscar, por si só, a felicidade que insistia em persegui-la.

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PRÓLOGO

 

22 de setembro de 1928

 

― Nasceu? 

― Nasceu, homem! Já disse! ― respondeu pela segunda vez a parteira, após realizar um parto nada fácil, quando notou o olhar curioso de Saturnino. ― É uma menina ― disse enquanto saía limpando as mãos num pano já todo manchado de vermelho.

― Uma menina… ― Saturnino repetiu baixinho, enquanto esfregava o rosto, misturando suor e lágrima, até que… ― Nasceu! Nasceu! É uma menina! Minha filha! ― levantou-se correndo, como que caindo a ficha, a passar pela parteira, indo ao encontro de Annita, sua mulher.

Ao chegar ao quarto, a moça, farta e cansada, com a filha nos braços, sorria enquanto dava-lhe o peito. Afoito, parou em repentino na porta, apoiando de leve a mão na maçaneta, a deparar-se com a menina sugando, faminta.

― Vem cá! ― enquanto ele se aproximava, ela de imediato lhe disse:

― Clarice! Ela vai se chamar Clarice. 

― Nossa menina Clarice! ― Ele reforçou, enquanto acariciava o topo da cabeça da esposa, beijando-o e, logo em seguida, a testa da menina, que se remexeu, se ajustando em aconchego no colo da mãe.

Era um sábado, também o início de mais uma primavera.

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PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO 1: A TERRA DAS LARANJAS

O amarelo cítrico dos pomares e uma menina de três anos correndo entre eles, com as mãos tão pequeninas, cheias da fruta que me viram crescer. Esta é a imagem que não sai da minha cabeça. Ela sou eu. Comecei a vida muito cedo, já vi muita coisa neste mundo. As laranjas que tentava carregar nos cestos que quase me engoliam, para mim e as outras crianças da vila, eram diversão enquanto nossos pais trabalhavam. Nossos pais, não, porque eu não tinha mais mãe. Mas a vó Romana fazia muito bem o seu papel com a ajuda da tia Alice.
“Clarice é chama que não cessa!”. Vez ou outra ouvia alguns dizendo sobre mim, mas não entendia era nada! Eu só sabia que desde bem pequena precisava ajudar minha avó Romana e minha tia pelas infinitas plantações alaranjadas da cidade onde nasci.

Acordava bem cedinho. Meu despertador era o galo que cantava no horizonte, mas também o trem. Ele sacudia todo, e passava sempre como se estivesse com muita pressa. Eu adorava correr para admirá-lo de longe, pela janela do meu quarto, vendo a fumaça que subia e cobria as árvores por onde passava.

― Clarice, minha filha, você já levantou? 

― Sim, vó Romana! Já vou! ― Era assim que minha vó descobria que eu estava de pé. Ela sempre me dizia para não me distrair, porque a lida nos chamava.

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Assim que despertava de verdade, após a locomotiva passar, me arrumava com a ajuda da tia Alice, que trocava minha camisola de chita florida por um vestido em estampa diferente, que ela mesma tinha costurado para mim. Por acaso lhes contei que tia Alice era uma excelente costureira e bordadeira? Creio que deva ter me esquecido. Então, provavelmente também não disse que alguns a chamavam carinhosamente de Branca, assim como era sua pele e como me lembro de ver a cor de seus cabelos se transformarem na velhice.

Já meu pai, bom, enquanto eu acordava, ele já estava de pé às três da manhã. Tomava seu café para ir para a roça, para cuidar, preparar a terra, semear, plantar, colher... não tinha muito tempo para pensar nas coisas da vida. Assim que se levantava, Seu Saturnino preparava um café bem forte e, sozinho, sentava-se à mesa de madeira, já desgastada e forrada com uma toalha de renda desbotada que vovó alinhavava. Ela fazia questão de arrumar a mesa, sabia que o filho colocaria sobre a toalha um bule fumegante que fazia jorrar pelo cômodo o perfume de uma bebida forte e fresca.

Acho que ele sentia falta da mamãe. Só não falava. Trabalhava duro, de sol a sol, naquela que era conhecida como a “terra das laranjas”.

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Quando eu, de pernas curtas, tentava alcançar as mulheres adultas da casa, o sol já tinha raiado fazia era tempo. Já bem distante, via homens e mulheres protegendo-se do astro-rei como podiam. Eles esfregavam a parte oposta à palma da mão na testa suada. Lembro-me dos cabelos de papai, que tinham tons acastanhados, escuros, que mais pareciam assemelhar-se à mistura da terra com que estava acostumado a lidar todos os dias na roça, escondendo-se debaixo de um chapéu de palha. Vó Romana e tia Branca, a Alice, usavam, além do chapéu, um lenço que protegia a cabeça. Elas faziam o mesmo em mim. Tia Branca sempre arrumava meus cabelos do mesmo jeito: dividia-os em duas tranças longas e negras ao meio, e amarrava um lenço bonito na ponta, estampado com flores rosas. O meu era de cetim.

Nem adiantava eu querer me exibir, porque antes mesmo que eu pedisse, ela já punha o chapéu por cima.

― Hummm, deixa eu ver se está bom ― dizia enquanto me pedia para dar uma giradinha, contemplando como me arrumava toda bonita só para ir para a lavoura. ― Está uma flor de formosura! ― me dizia orgulhosa, até que vó Romana chegava no quarto e a apressava:

― Mas para que gastar tanto tempo enfeitando Clarice para catar laranja, Alice?

― Deixa, vó! Eu gosto! ― eu a defendia e ela piscava para mim.

― Andem já as duas que estamos atrasadas! Ora só, ir pra lida empetecadas! ― Vó Romana saía resmungando, enquanto tia Branca saía atrás, mesmo correndo como dava.

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Na infância, por um tombo que sofrera, carregava uma protuberância nas costas que a deformava, mas era só isso. Para me dar a mão ou me fazer cócegas nem lhe parecia custoso. 

Tia Branca era pequenina e tinha a pele clarinha! Lembro-me como se fosse hoje de, até na sua velhice, não me arrepender de chamá-la assim, justo pelo tom branco acinzentado que reluzia ao sol, enquanto ela, de manhãzinha, dividia uma xícara de café que deixava esfriando na mesa enquanto bordava.

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